A medicina que atravessa o mundo
Durante os anos 40, o Líbano era parte integrante do território sírio – que se manteve colônia francesa até meados de novembro de 43, quando houve a libertação do presidente do país, Bechara El Khoury e o premiê Riad Al Solh e se deu o surgimento do Estado Nacional libanês.
Khoury e Solh foram presos, pois, se mantinham contra a ocupação do país pelos franceses. Durante a prisão, que durou cerca de onze dias, diversas foram as manifestações populares que tomaram conta do país, até que, finalmente, o governo francês se viu obrigado a autorizar a soltura, no dia 22 de novembro – dia que hoje é comemorado a Independência do Líbano.
A conquista da independência, porém, não significou o surgimento do Estado Nacional libanês, já que, além da Síria não reconhecer a emancipação do país, divisões religiosas internas inviabilizaram o exercício de um poder centralizado. A guerra civil no Líbano foi resultado das tensões e conflitos entre árabes e israelenses pela posse do território da Palestina.
Enquanto o país pegava fogo, a família Younes tentava levar a vida com o máximo de tranquilidade que lhes era permitido.
Riad, que levava o nome do premiê do país, filho de Naim e Wajiha Younes, nasceu em uma madrugada fria de agosto. Era dia 27. A cidade já não era mais a mesma, algumas das poucas casas que habitavam o local já não existiam mais. O barulho das bombas era ensurdecedor quando Wajiha sentia as primeiras contrações do parto. E, em meio a um abrigo de guerra, em 1959, na cidade de Rifa, em Bahrein, ela dá à luz a um menino que gritava, mas, por causa dos estrondos incessantes, não se ouvia.
Naim e Wajiha, professores por vocação, gostavam de olhar os rostos interessados das crianças quando contavam algumas peripécias históricas sobre o mundo: um pequeno acalento e refúgio para aqueles corações amedrontados pelos bombardeios. Eles ministravam as aulas na escola primária de Bahrein, pequeno país próximo ao Golfo Pérsico.
A infância de Riad foi voltada quase toda para os estudos. “Até os seis anos eu estudava numa escola em Bahrein, junto com meus pais, mas depois, nós fomos para o Líbano onde permaneci por um tempo no meio da guerra civil. Pouco tempo depois, o Brasil nos acolheu. Teve uma época lá no Líbano que nós ficamos sem casa foi então eu meu pai finalmente pediu para que nós saíssemos de lá”. Em 1975 sua família, cansada da guerra que travava desde que nascera, resolve fazer morada no Brasil. “O Brasil é minha segunda casa, eu, hoje, me considero muito mais brasileiro do que libanês”, confessa.
O Brasil foi o destino escolhido pela família Younes, pois, anos antes, Naim já havia vindo para as terras tupiniquins. Ele trabalhou durante um tempo no país enquanto mandava dinheiro para a família no Líbano. A saudade e o começo da guerra o obrigou a trazer todos para morarem junto de si, então Naim preparou os documentos necessários para trazer a família e voltou para busca-los. “Antes de virmos para o Brasil, eu pensei: preciso estudar esse país. Estou indo para lá e não sei nada. Lá no Líbano a gente aprende que o Brasil é só a Amazônia, que você vai para lá e a única coisa que vai ver é onça e cobra”, conta.
Era uma terça feira, dia 7 de setembro de 1976, quando os Younes desembarcaram no país. O casal Naim e Wajiha acompanhado dos dois filhos Riad e Khaled viajaram cerca de quatro dias até o destino que mudaria suas vidas: São Paulo. “Eu e minha família saímos do Líbano com destino à Síria, para fazer uma conexão com a Europa, na Holanda, para só depois desembarcar no país”, conta.
Após quase três dias viajando, a família Younes não via a hora de pisar em terra firme. Chegaram em Campinas e de lá se encaminharam para São Paulo. “Naquela época não existia Guarulhos, então, os voos internacionais desembarcavam em Viracopos. Então saímos de lá com destino a São Paulo. Parecia que a viagem não acabava nunca, eu olhava pela janela e só via árvores, achava que estava na Amazônia, mas enfim chegamos bem”.
Sem documentos e trajando apenas as roupas do corpo, a família mantinha uma réstia de esperança em seus corações. “Enquanto vinha para o Brasil, eu dormi durante todo o caminho e quando acordei, já estava em São Paulo, com esse barulho característico dessa cidade maravilhosa”.
Quando acordou, a pequena criança estava em um outro país completamente diferente do seu, numa cultura que não era a sua. Assustado e sem entender o idioma dos passantes na rua, Riad, pelo menos por uma noite, se sentiu em casa: estava junto de sua família, com pessoas que falavam seu idioma e entendiam e compartilhavam da mesma sensação estranha que lhe tomava a garganta antes de dormir – ele estava na casa de Hajj Hussein El Zoghbi, parente indireto da família, mas que os acolheu durante a primeira noite de outras milhares que aquela família viria a ter em território brasileiro.
Após aquele dia turbulento, um mundo novo precisava ser descoberto. Um Brasil que precisava ser desbravado.
Riad, o filho mais velho do casal, sempre demonstrou um dom especial para os estudos. No Líbano, estudou, mesmo com todas as dificuldades da guerra, até concluir a escola e, sempre que podia, lia algum livro. Entretanto, aqui no Brasil, a dificuldade com a língua acabava dificultando um pouco as coisas. “Quando cheguei aqui eu não sabia falar o português, aí meu pai me matriculou em uma escola pública e, às tardes, eu fazia um cursinho. Foi assim até eu entrar na USP”, comenta.
Inicialmente, enfrentou dificuldades como o idioma e o fato de não poder estudar por não possuir documentos, mas que logo foram superadas. Aos 18 anos, Riad viu suas esperanças surgirem novamente quando conseguiu ingressar na Universidade de São Paulo (USP) graças à Lei dos Refugiados de Guerra, – que havia entrado em vigor seis anos antes de sua chegada ao Brasil – no curso de Medicina, e com toda dedicação em aprender português, logo já estava adaptado à língua. Ele e toda sua família sentiam-se acolhidos e protegidos nas terras brasileiras.
Foi quando Riad e seus colegas de sala passaram a atuar no Hospital das Clínicas, que ele decidiu o que queria para seu futuro: ser cirurgião. “Me sentia atraído pela capacidade do cirurgião de resolver os problemas com as mãos”, conta, enquanto pousa os olhos às pontas de seus dedos indicadores. Tomada a decisão que mudaria sua vida para sempre e com sede de ainda mais conhecimento, viajou para Nova York como membro do Departamento de Cirurgia do Memorial Sloan-Kettering, permanecendo lá de 1988 a 1990. “Eu viajei para estudar no maior país do mundo quando se fala em cirurgia de pulmão enquanto no Brasil isso era um tabu”.
Riad permaneceu durante dois anos lendo e aproveitando para absorver tudo o que essa oportunidade tinha para lhe proporcionar. Absorveu conteúdos novos e, ao voltar para o Brasil em julho de 1990, passou a trabalhar no Hospital do Câncer como chefe do Departamento de Cirurgia Torácica, a convite do Presidente da Fundação AC Camargo, Dr. Antonio Prudente, onde ficou até 2007.
Naquele momento, o departamento passava por uma total reformulação, e Younes foi de extrema importância para o cenário mudar completa e positivamente. “As decisões passaram a ser tomadas em conjunto, por vários especialistas. Antes, um cirurgião poderia orientar o tratamento por quimioterapia, o que é um absurdo”, diz. Após 2007, Riad passou a ser Diretor do AC Camargo, onde ficou até 2011.
De 2011 em diante, ele passou a integrar diversos outros lugares, incluindo a Comissão Médica do Hospital Sírio Libanês, até 2013. Logo após, foi eleito diretor clinico do hospital, onde ficou quatro anos.
Em 2015, ele foi convidado a participar e direcionar o centro de oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz onde permanece até hoje.
Ele e sua equipe foram reconhecidos internacionalmente pelo trabalho feito no Hospital do Câncer. A revista internacional Chest publicou o estudo que descreve a rotina e estratégia de seguimento dos doentes de câncer de pulmão após cirurgia no Hospital do Câncer. A publicação foi selecionada pelo American College of Chest Physician – colégio americano mais importante no seguimento de diagnósticos torácicos – entre os dez melhores trabalhos da década sobre câncer de pulmão, e até os dias de hoje, é uma referência para todos os especialistas da área. Seu livro Câncer de Pulmão: Prevenção, Diagnóstico e Tratamento, organizado por Antônio Carlos Buzald e Artur Katz, é o primeiro em recomendação sobre o assunto. O livro contém dados completos e exclusivos sobre os 840 casos de câncer de pulmão que foram tratados por ele durante sua década no Hospital do Câncer.
Riad se depara com diversos casos delicados diariamente, “muitos pacientes chegam a mim quando já estão com os pulmões queimados e destruídos”, entretanto ele se considera tranquilo, mesmo realizando cirurgias demoradas constantemente, “eu nasci para fazer isso”, conclui.
Mas não é só a carreira que faz do oncologista uma grande pessoa, seu maior motivo de orgulho é seu projeto de internacionalização da medicina brasileira, que treina os médicos do Oriente Médio. O projeto teve início entre 2002 e 2003, e o que o motivou foi o fato de que após o 11 de setembro, os doentes do Oriente Médio não conseguiam mais ir para os Estados Unidos para se tratarem por causa das restrições.
Então, junto com o Hospital Sírio-Libanês, Riad mostrou que a medicina do Brasil é muito eficaz e conseguiu atravessar fronteiras. Desde então, Younes ministra palestras em diversos países árabes e realiza essa ligação entre os médicos brasileiros e árabes para aprimorar cada vez mais a medicina. “Nós vamos para vários lugares fazendo palestra, fomos para escolas públicas, explicando que á para prevenir o câncer, quais são as formas de tratamento e prevenção, coisas bem simples”. É a realização de seu maior sonho, poder ajudar as pessoas necessitadas, tornando esse projeto muito maior e mais gratificante do que todos os trabalhos já feito em sua carreira.
O projeto visa qualificar os médicos do Oriente Médio aqui no Brasil, trazendo um grupo de até 20 pessoas, escolhido pela equipe para capacitá-los à levarem conhecimento daqui para lá. “Queríamos levar um pouco dessa ajuda e acolhimento que tivemos aqui no Brasil para lá também. Eles sofrem muito, acho que se a gente faz um pouquinho, faz muito”, comenta.
Além da qualificação médica, este projeto também leva os equipamentos necessários para fazer transplantes de fígado ou mesmo ultrassom para regiões carentes e afetadas pela guerra. “Nós, com ajuda da FAMBRAS, levamos alguns materiais para um campo de refugiados tunisianos. Queremos levar um pouco de ajuda para essas pessoas que não tem nada, levar um pouco de esperança”.
Riad viaja todos os anos para o Líbano, lá ele visita alguns campos de refugiados para levar a ajuda que pode e um pouco de esperança para aquelas pessoas que, na maioria das vezes, não tem nada. “Faço essas campanhas para diminuir um pouco a dor dessas pessoas. O acesso de saúde lá é mínimo”.
Hoje ele comenta que, a cada dia que passa, está mais feliz e realizado com seu trabalho nos hospitais que comanda além da vida pessoal. “Hoje eu me sinto muito realizado, isso é uma meta para mim. Fazer o bem é uma meta na minha vida. Me sinto muito privilegiado, tive muitas oportunidades aqui no Brasil, além de que minha família me acompanha e apoia em tudo o que preciso”.
Aquele menino que chegou no país naquele ano em 1970, assustado e focado nos livros, hoje já não é mais o mesmo. Hoje Riad é uma pessoa muito mais realizada e acredita que os sonhos são, sim, um trunfo para conseguir alcançar as coisas.