O gosto salgado do mar

Bruna Kadletz, menina dos olhos de cor aveludada, nasceu no ano de 1982, no auge das melosas músicas do Elton Jhon.

Filha de Bruno e Eliane a infância pôde, muito bem, se resumir aos verões em família passados na praia da Guarda do Embaú, no litoral sul de Santa Catarina. Bruna cresceu de forma simples: cercada pelo mar e natureza exuberante.

A mais nova filha do casal, sempre foi protegida pelos mimos da mãe. E desde cedo mostrou aptidão pelos estudos, uma garota dedicada, os boletins nunca chegaram a ver uma nota baixa. Todavia, o gosto pelos estudos eram coisa dos genes, filha de um pai dentista e mãe médica ginecologista, homeopata e acupunturista ela trilhou os caminhos da medicina: em 2004 se formou em odontologia pela Universidade Federal de Santa Catarina – USFC. “Do meu pai, herdei o amor pela natureza. Ainda me lembro que um dos primeiros presentes que ele meu deu foi um vaso de bougainvillea – mais conhecida como flor de primavera, que depois plantamos no jardim”, conta com os olhos marejados.

Como era uma criança introspectiva e um tanto tímida, encontrava refúgio nas flores e no jardim da casa de praia. Sempre tendo um relacionamento especial, de muita amizade e cumplicidade com a mãe, Eliane. “Ela é meu grande amor e modelo para mim, me ensinou os valores religiosos, morais e éticos que guiam minha vida e escolhas”, conta. E foi Eliane a responsável por levar Bruna aos trabalhos voluntários “eu nem tinha 10 anos de idade, quando ela me introduziu ao trabalho voluntário e plantou em mim as sementes de justiça social e o olhar para o marginalizado outro”.

Aos sábados, ao invés de ir ao shopping ou parque, ela costumava levar a jovem menina a uma instituição cristã, onde, durante a semana, oferecia atendimento ginecológico para mulheres, muitas vezes vítimas de abuso e violência, que moravam na comunidade atendida pela instituição. Aos sábados, o local abria suas portas para as crianças e jovens e oferecia café da manhã, brincadeiras e outras atividades. “Eu ajudava a servir o café com leite com pão de trigo e manteiga e, se desse tempo, podia brincar com as crianças também”, conta.

Quando completou uma certa idade, Bruna tomou uma grande decisão em sua vida, respondendo a famosa pergunta “o que eu quero ser na minha vida?”. Essa pergunta não foi assim tão difícil de ser respondida, seguindo os passos dos pais, a jovem garota escolheu a área da saúde.

Sempre muito estudiosa, não foi difícil entrar numa faculdade federal e, em 2004, ela se forma em odontologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e, como o gosto pelos estudos jorrava em seu sangue, ainda no mesmo ano, ela dá entrada na especialização em periodontia, pela mesma universidade.

Bruna atuou na profissão por cerca de quatro anos, entretanto, no início de janeiro de 2008, sua vida vira de cabeça para baixo quando ela enxerga uma possibilidade bem longe de casa: na cidade de Imperatriz, interior do Maranhão. “Meus pais encararam a situação muito bem, eles sabiam dessa minha inclinação para o lado social, eu queria conhecer lugares novos, coisas novas, pessoas e no Maranhão eu encontrei essa possibilidade”, explica.

Ao desembarcar no aeroporto, ela já se depara com outra situação, outra vida. “Lá, entrei em contato com outra realidade, de extrema pobreza e aberrante desigualdade social”.

Toda aquela situação, o medo e o abandono mexia com Bruna de uma tal maneira que era como um vazio que apertava sua garganta e ia transbordando de dentro de seu peito. Ela sentia que precisava fazer alguma coisa. “O abandono social, político e o custo humano da desigualdade econômica, geraram um grande conflito interno em mim. Eu me sentia confrontada constantemente, (…) como eu poderia estar contribuindo para a manutenção daquela realidade e meu propósito de vida? Queria sair de trás da máscara e do consultório para compreender melhor o mundo, suas diferentes culturas e questões de relevância global”.

Foi quando, em julho de 2009, Bruna coloca um ponto final.

Um ponto final naquela situação, naquela condição de vida.

Aquele era mesmo um ano de mudanças na vida de Bruna, em novembro de 2009, novas ideias surgiram junto de uma nova vida: “Suspendi minha carreira e fui passar uma temporada na Austrália. Na época, eu imaginava que seria uma decisão temporária e que a qualquer momento poderia voltar a atuar como dentista”. Mas enquanto passava essa temporada em outro país, o destino preparava outro caminho para ela. “Passei alguns anos morando fora viajando e entrando em contato com outras culturas, aprendendo mais sobre o mundo e sobre mim”.

Completamente disposta a enfrentar novas experiências e desafios, sempre com muito carisma, Bruna não se limita às diferenças culturais e desenvolve contato com diversas pessoas. Durante sua estadia na Austrália, conheceu uma vietnamita que se tornou não só uma amiga, mas também uma grande inspiração.

“Ela e sua mãe haviam buscado refúgio no país na década de 80. Dela, ouvi histórias de coragem e resiliência. Elas, junto com tantos outros vietnamitas, tentaram travessia de barco do Vietnam para a Austrália, mas o barco foi interceptado e as duas passaram dois anos isoladas em uma ilha do Oceano Pacífico, até que tiveram seu pedido de refúgio aceito pelo governo australiano, por meio da sua tia que já morava no país”, explica.

Bruna ouviu também sobre as dificuldades em navegar nas culturas diferenciadas e de integração durante a infância e adolescência. Este foi o primeiro contato pessoal da dentista com uma pessoa que havia sido forçada a abandonar sua casa e partir em busca de segurança em uma terra desconhecida. Ela já havia se ligado à essa mulher. E por isso, essa primeira experiência com uma pessoa refugiada foi positiva e, de certa forma, ajudou a construir uma imagem humanizada de populações refugiadas em sua mente.

“A imagem que tenho hoje sobre o refúgio está diametralmente oposta ao que é retratado em veículos midiáticos e discursos xenofóbicos, que tendem a narrar refugiados como ameaças à segurança nacional, ordem social e herança cultural de sociedades hospedeiras. Eu os vejo como potenciais amigos, pessoas com as quais gosto de conviver e com quem aprendo muito sobre a vida”, afirma Bruna.

Com uma nova visão sobre a causa, em 2012, ao se deparar com a intensificação do conflito sírio, mesmo desconhecendo o contexto e sabendo pouca coisa sobre a cultura árabe e o Islam, Bruna se voluntaria em uma renomada organização internacional para ir trabalhar na Jordânia, país que estava recebendo um grande fluxo de sírios na época, porém não recebeu nenhum retorno da organização. Independente disso, Bruna não desistiu. “Nunca recebi retorno algum, mas não desisti. Ao contrário, fui me preparar e estudar para ingressar na área”.

Após toda a dedicação para se familiarizar mais com o assunto, em 2014, foi aceita no Mestrado em Sociologia e Mudança Global pela Universidade de Edimburgo. O mestrado focava em deslocamento forçado e Bruna chegou a realizar matérias optativas sobre o assunto, particularmente sobre o nexo mudança climática, degradação ambiental e deslocamento forçado.

Durante o mestrado, Bruna se filia a um grupo de estudantes de PhD que haviam ido ao Campo de Refugiados Za´atari, na Jordânia, para filmar um documentário sobre a experiência de refúgio para as crianças. O projeto tornou-se uma organização não governamental, LIVED, do qual ela acabou participando das atividades iniciais. “Exibíamos o documentário em espaços acadêmicos com o objetivo de lançar luz na causa síria e situação na qual os refugiados sírios se encontravam. Com o meu retorno ao Brasil no final de 2015, continuei exibindo o documentário em meios acadêmicos e escolas públicas com o mesmo objetivo”.

Sua pesquisa de campo foi na África do Sul onde passou três meses visitando comunidades refugiadas e imigrantes em Johanesburgo, buscando compreender a realidade deles e o contexto social da xenofobia no país. Lá, ela realizou sua primeira ação de ajuda, acompanhando um grupo que servia sopa e prestava atendimento médico a refugiados e imigrantes em situação de rua, na grande maioria menores desacompanhados. “Muitos traziam as marcas dos conflitos armados que foram obrigados a participar e elas eram refletidas na falta das mãos e braços que haviam sido decepados, enquanto que outros carregavam doenças contagiosas, como tuberculose e HIV”, relata, emocionada ao lembrar das imagens.

O serviço era oferecido à noite, de forma meio sombria já que o grupo adentrava zonas conhecidas pelo alto índice de violência. Todos os dias, o local de distribuição era alterado. Por conta dos ataques recorrentes relacionados a onda xenofóbica que insurgiu no país em 2015, o cuidado era extremo, para não se tornarem alvos de ataques também. Depois do seu primeiro contato direto com as comunidades refugiadas, ela visitou campos de refugiados tanto oficiais como não oficiais, na Jordânia, Líbano, Grécia, Hungria, Sérvia e França, e alguns de abrigos temporários na África do Sul e Turquia.

Ao tocar nessas memórias, ela consegue sentir a mesma sensação, como se ainda estivesse lá. Um misto de tristeza, impotência e motivação, afinal, é praticamente impossível entrar em contato com a realidade do sofrimento humano e não ser tocado de alguma forma.

Essa ligação com o movimento migratório não é apenas uma vocação pessoal e moral, Bruna conta que seu bisavô materno era cidadão sírio e chegou ao Brasil no início do século XX. “Ele veio fugido das perseguições do Império Otomano e buscando melhores condições de vida. Ele é uma figura misteriosa em nossa família, e temos pouquíssimas informações sobre sua vida, antepassados e trajetória”.

Ela também gosta de lembrar que sem seus valores espirituais e religiosos, não haveria tamanha motivação. “Diante da pior crise humanitária de nossos tempos, não podemos fingir que a crise existe em um universo paralelo e desconexo da nossa realidade. Há algo intrinsicamente errado quando sistemas políticos e econômico priorizam o interesse do complexo industrial militar e segurança nacional em detrimento de vidas humanas que são castigadas e esquecidas em zonas de conflito, campos de refugiados e nas margens de sociedades hospedeiras. Mais errado ainda é quando decidimos, como sociedades ou indivíduos, fechar os olhos diante de situações de injustiça e/ou necessidade humana, seja pontual ou em proporções catastróficas”.

Mesmo após tudo que passou, Bruna acredita que a crise nos convida a refletir sobre a ordem global que foi criada e as injustiças do mundo, sobre que tipo de ser humano queremos ser e como podemos atuar no alívio do sofrimento alheio. “Se a gente se anestesiar diante desses olhares e normalizar essas situações, é como se sua humanidade tivesse morrido”.

Hoje, aos 35 anos, sua maior motivação é alimentada a cada novo dia, pois, agora, ela se dedica exclusivamente à escrita e palestras com dados que coleta em suas missões pelo mundo, ao projeto Círculos de Hospitalidade, projeto criado por ela, que visa reacender a prática da hospitalidade dentro de comunidades, buscando humanizar as vidas em refúgio e construir espaços para interação e sociabilização de comunidades hospedeiras e refugiadas.

“Somos um grupo pequeno de voluntários em Florianópolis que oferece aulas de português para refugiados e atividades recreativas, mobilizamos campanhas de doações e atividades culturais. Por ser um projeto novo, que ainda não completou dois anos, enfrentamos diversos desafios e sempre temos que nos reinventar e improvisar para dar continuidade ao trabalho”.

A maior perspectiva desde a criação deste projeto é a de ajudar o maior número de pessoas possível. “A sensibilização é particularmente importante no momento político que atravessamos, marcado pela toxicidade da xenofobia, islamofobia e movimentos contra refugiados. Para tal, estamos nos estruturando para oficializar o projeto e tornarmos uma associação registrada”, finaliza.

Em sua última missão, ela coletou dados para a produção do documentário em parceria com o diretor irlandês Alan Gilsenan, a ser exibido ainda este ano, na rede irlandesa RTE. Todos esses dados estarão também descritos no livro que ela está trabalhando.

 

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